Tropa de Elite 2

13 de outubro de 2010 at 18:44 (Uncategorized)

Fui ver ontem o Tropa de Elite 2, depois de ter lido as críticas do Wesley ao filme. Comecei obviamente com uma certa má vontade: tinha visto há alguns dias o final do primeiro filme na TV (nem me lembrava de quão fascista ele era), fiquei bem desconfiada do trailer e tinha na cabeça todos os comentários do Wesley. O fato é que nos primeiros 20 minutos de filme, talvez, as minhas espectativas ruins pareciam se confirmar: um Capitão Nascimento tão fascista quanto antes, ridicularzando o discurso dos direitos humanos, sempre o herói incorruptível e a maldita narração ao fundo conduzindo a interpretação da trama.

Durante ainda um bom tempo achei o filme bem indeciso. Em certos momentos parecia reafirmar todo o discurso do outro, em compensação, alternava com momentos fortes de contestação das práticas da polícia. Muitas cenas poderiam deixar a dúvida entre uma tentativa de retrato da realidade feito para chocar pela violência e uma exaltação dessa mesma violência, dúvida que poderia ser lançada sobre o espectador, este gostando ou não da cena conforme sua posição ideológica. Poderia. Se não fosse a sempre maldita narração que decidia quem era o filho-da-puta e quem era o herói.

As alternâncias de situações escrotas com críticas bem feitas foi, no entanto, mudando seu rumo. Conforme a trama se complexificava, mais o filme se afastava da pura violência de mocinho X bandido, mais a ação dos personagens principais era amarrada por teias alheias às suas vontades e suas atitudes perdiam potência perto da pluralidade de fatores. E, junto com as cenas, mudou aos poucos o tom da narração. O personagem se desenvolveu com o filme. O último momento do Capitão Nascimento como o conhecíamos do primeiro filme é a fase de aparente vitória de seus ideais, quando ele trabalha na secretaria de segurança e tem a oportunidade de concretizar todo o ideal fascista de seu início de carreira: agora não era só a violência, ele tinha todo um aparelho público-estatal a seu favor.

Nesse mesmo percurso de ascendência do Capitão Nascimento como o conhecíamos, ascende o personagem do Fraga/Freixo. Ele começa o filme como um personagem fraco e interesseiro, a ponto de roubar a mulher do outro. (Tenho que admitir que a trama familiar estilo novela das oito foi uma aproximação com o gosto popular que achei bem desnecessária.) É um esquerdistazinho que usa os direitos humanos como trampolim político. O personagem vai ganhando corpo muito devagar e tem sua virada junto com a do outro: quando o policial desaba e vê todo o mundo em que acreditava ruindo na sua frente, o “cara dos direitos humanos” cresce como o chato que tinha razão desde o começo. Ele vira o herói porque é o único que entendia “o sistema” desde o início, foi o cara que bateu o pé e continuou sua briga até o fim. Mais para o final do filme a gente até esquece a filha-da-putagem de ele ter roubado a mulher do outro, ele até parece um padastro bem tranquilo. A relação do Nascimento com o filho deixa de ser mostrada como a influência maléfica de um padastro colocando idéias na cabeça do menino pra ser uma relação muito mais complexa de afastamento entre pai e filho que não se compreendem.

Foi da metade do filme pra frente que comecei a entender que toda a narração (a oral e a mais subterrânea, a do conjunto de elementos que mais suscitam sensações do que expressam idéias formadas) feita do ponto de vista do personagem principal invertia seu papel. Se num filme era ela que dava o tom definitivo da exaltação da violência e do superherói redentor, no outro ele usa todo o seu potencial carismático para dar uma rasteira no espectador. A maior abertura de história do cinema nacional é tributária quase exclusivamente da identificação do público com o policial. A condução de todo o decorrer da vida do sujeito por essa mesma narração obriga o espectador a se confrontar com sua própria cegueira.

Não quero dizer com isso que todo o país vai virar comunista e entender todas as nuances do capital e da sociedade. Se alguém esperava que um filme fizesse isso pode ir logo pulando da janela porque coisas assim não acontecem. E se alguém queria um filme que tratasse com toda a complexidade possível as questões que nós, da esquerda (assumo que ninguém da direita me leia, e, se houver um, aproveito pra mandar se fuder, que é pra não perder o hábito), queremos ver tratadas, esse alguém que vá ver um filme de esquerda que fale pra esquerda e que tem tanta potência pra afetar alguém quanto o meu dedo mindinho contra as milícias.

Os dois grandes méritos do filme pra mim são a porrada que dá nas convicções dos apaixonados pelo Nascimento e o fato de conseguir tratar de forma muito mais elaborada do que eu poderia esperar de um filme brasileiro de duas horas das relações por trás da violência, o discurso que mais arrebata a população média hoje em dia. Ele é bem sucedido mostrando a necessidade de um discurso contra o tráfico, proferido por Wagner Montes da vida, a necessidade da eleição de políticos para manter o esquema no esquema e, acima de tudo, a necessidade de uma polícia eficiente e alheia a sua verdadeira função no tabuleiro. O crescente do herói-polícia foi necessário para sua queda, porque junto com ela foi a crença no poder milagroso do BOPE.

Se metade das pessoas que virem esse filme deixarem de crer numa violência policial high-tech como redentora do mundo, pra mim já tá bom. Fui ver o filme no shopping tijuca já me lamentando pelos comentários que seria obrigada a ouvir saindo das bocas da playboyzada tijucana, como disse o Melo, gritando “faca na caveira”, e saí de lá bem contente com o resultado: uma platéia calada.

Um último comentário sobre o Capitão: não acho que a manutanção dele como um cara correto e obstinado, como o ainda herói da história, carregue com ela a permanencia do paradigma policial. A cena do inquérito é fundamental para entender o personagem: ele conta que o filho perguntou pra ele por que o trabalho dele era matar e ele diz que depois de 20 anos na polícia ainda não sabe responder. A incapacidade do policial de se justificar, se ele tiver conseguido de fato atingir seu público, pode contribuir para arrancar desse público algumas certezas.

P.S. Leiam também o texto do Erick.

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A vontade da não-vontade: experiência dialética de quem não sabe da dialética

29 de agosto de 2010 at 1:24 (Exorcismos)

Passei os últimos meses, anos, talvez, pensando como sou pequena e impotente diante do mundo. Falando pra mim mesma que não conseguia realizar nada por não saber o que quero da minha vida. Porque quando você não sabe o que quer não pode ter um objetivo, contruir algo, certo? Passei os últimos dois ou três anos me achando a pessoa mais desgraçada do mundo por não ter a sorte de saber o que quero. As pessoas que sabem o que querem são felizes, elas podem até falhar, mas a vida delas tem um sentido, certo? E a vida faz sentido quando ela tem sentido. Foi só hoje que entendi com clareza o óbvio do óbvio, o que já me diziam há muito: que eu não quero saber o que eu quero, porque eu não quero querer nada. Me tornei uma niilista digna de tudo o que há de ruim nesse nome. Provavelmente eu nem quero nada mesmo da minha vida. Ou talvez eu queira, vai saber. O fato é que tenho fugido o máximo possível de querer coisas. Tem sido um drama toda vez que sinto fome, porque não consigo sequer decidir se prefiro um cachorro-quente ou um pedaço de bolo. Não quero ter que escolher entre sair de casa e ficar. E sempre que sou obrigada a tomar uma decisão me culpo imediatamente por não ter escolhido a outra opção, por melhor que tenha sido a escolha. Tenho criado as estratégias mais diversas para fazer com que os outros tomem decisões no meu lugar, assim posso reclamar de quão pouco controle tenho sobre minha vida. Assim possso ter certeza de que nada é responsabilidade minha. Vivo pelos outros para poder culpá-los de não viverem por mim. O ressentimento em pessoa. Tenho sido o fraco que se encolhe num canto diante da força dos outros e que se ressente dessa força. E o mundo que me esmaga é invencível porque ele é uma força externa que vem de dentro. Ninguém nunca me forçou a nada: eu me forço a seguir uma vontade suposta no outro, ou melhor, a uma vontade real em mim de seguir o outro. Se um amigo me chama pra sair, sou obrigada a aceitar, não porque eu ache que isso vá importar mais ou menos para ele, mas porque minha vontade de ir me obriga a enterrar qualquer vontade de ficar, que é culpa pela vontade de ir. A vontade genuína aparece como coerção, a outra que é culpa como vontade verdadeira. O resultado é que qualquer escolha vira a imposição de uma vontade externa. Qualquer tomada de decisão uma violência. E qualquer momento da vida (pois não existe momento algum em que possamos nos abster de decidir) uma derrota violenta.

Me lembra um dos elementos mais interessantes do filme Inception: o sonho da escada infinita, que sobe e sempre volta pro mesmo lugar. Uma escada dialética? Quem já sonhou com a escada infinita sabe o horror que é estar preso no labirinto mais simples do mundo.

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*ismos

20 de agosto de 2010 at 23:25 (Política)

Vi num blog por aí alguém dizendo que não é marxista, nem dadaísta, nem existencialista nem nenhum ista. Não é assunto meu se o fulano em específico é isto ou aquilo em relação aos ismos, mas o fenômeno é que me interessa. Não são poucas as pessoas que manifestam seu desagrado aos ismos. São gritos de independência contra os rótulos e as identidades ideológicas. Bonito, né? São pessoas dizendo “sou um pensador independente! Leio o que me interessa e não me filio a ninguém!” Fiquei pensado então: por que não se afirmar com uma afirmação? Para qualquer um que já simpatizou com alguma idéia Nietszcheana uma negação cheira mal de longe, de muito longe. Cheira a ressentimento. Mas não vamos precipitar as coisas chamando todos por aí de ressentidos. Investiguemos.
Como marxista que sou (Sim eu falo que sou uma ista! Sou comunista também! E não como criancinhas!), me chama a atenção o fato de que quase todas as declarações de independência começam como uma declaração de não-marxismo. Sinceramente não me lembro de nenhuma que começasse com outro ismo. Será que os livre pensadores são livres só por não ser marxistas? Aí colocam uma lista de coisas depois do velho barbudo só pra não ficar feio? Começo a pensar que sim.
E por quê?
Tenho a impressão de que se você é marxista tem primeiro que citar uma lista de justificativas: não sou Stalinista, não como criancinhas, não sou a fovor de ditaduras, não sou um barbudo maconheiro que está há 20 anos na universidade… Depois disso tudo você pode dizer: eu leio Marx, mas a maioria dos marxistas é muito ruim, sou um leitor independente. Será que os nossos anti-istas não querem se opor a isso?
Pode ser, mas o que eu acho mesmo é que as coisas é um pouco mais profunda.
Vivemos quase no fim da história. Ela não acabou, mas quase não mais se acredita nela. Acho que nunca conheci alguém com menos de trinta com esperanças de transformações sociais efetivas para o mundo. Toda a geração de nascidos dos anos 80 pra frente tem no máximo perspectivas para as próprias vidas, em geral não muito animadoras. Não é a toa. Depois de 89 não houve nenhuma conjuntura revolucionária palpável no mundo. Antes no mínimo havia o fantasma de que o mundo como era conhecido se desmantelasse numa guerra Ocidente-Oriente. O fantasma do comunismo morreu como possibilidade histórica no imaginário comum, mas não morreu no inventário de monstros horripilantes.
Ao mesmo tempo, vivemos num país em que é feio dizer que se é de direita. Direita é a ditadura, é querer que as coisas fiquem sempre como estão. São poucos os corajosos a se afirmarem como tal.
Os que não são de esquerda de verdade, os que não têm nenhum ativismo muito explícito, sofrem em geral de culpa ou de ressentimento. Me perdoem se for um diagnóstico psicológico muito errado. São impressões quase inevitáveis. São muitos os decepcionados da Era Lula, são muitos os que um dia foram esquerda porque se opunham à ditadura e agora são órfãos do que se opor. Precisam justificar-se. Não sou de esquerda porque, bom… a esquerda é foda, né… Tem todos esses marxistas ortodoxos. Não sou ortodoxo! Até queria ser de esquerda, mas não tem espeço… Sou a fovor de transformações sem rupturas, pacíficas! Sou a favor do meio-ambiente. (A nova moda politicamente correta: você pode dizer que quer mudar o mundo e viver sua vida bem calmamente porque as conseqüências não vêm em menos de 20 anos, então você dorme tranqüilo pois fez a sua parte separando o lixo. O mundo não mudou? Claro, é uma ação de longo prazo. O aquecimento global é lento, mas destrutivo!)

Os nossos anti-istas (ou antiistas?) não são anti-ismos. São anti-um-ismo-específico. Mais que isso! São anti-posicionamento. São anti-tomar-lados. São anti-afirmação. São grandes nãos. São senso-comum e satus quo porque o que reina no nosso mundo é a passividade e a covardia. Para mim o que colabora com o estado das coisas de nada mais pode ser chamado do que de direita. Tenho um certo prazer em ouvir um “sou de direita!”. É um convite ao ódio, melhor do que ao sono. Soa a trincheiras sendo montadas. Trincheiras tẽm sua beleza. A imagem mais feia do mundo para mim é a de um zumbi, de pessoas andando por aí semi-mortas. Porque pra mim afirmação é vida e negação é morte. O definir-se pelo não-ser é ressentimento, é amargura.

Eu aceitaria um militante de qualquer causa falando não sou marxista. Acontece que a fatídica frase sempre sai da boca dos que gostam de dizer que não são nada politicamente. Afinal, ser algo politicamente se resume a ser comunista ou de direita? Parece que sim.
Não ser comunista é um aplacar do ressentimento, justificar a própria apatia.
Desafio aqueles que querem dizer que não são ismo a começar uma frase com “eu sou”!
Pela primeira vez o primeiro verbo que todo mundo aprende pela primeira vez na aula de português do colégio fez sentido! A revolução talvez esteja mais próxima quando virmos textos começados da maneira mais primária e mais simples já vista:
Eu sou… (quem começa?)

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25 de dezembro de 2009 at 0:45 (Poesia)

Disseram que era pra escrever poesia
Disseram que faz bem
No papel,
As angústias da alma
E tudo mais que dizem que é terapia

Acontece que poesia é coisa de bêbado
De bom humor
E de brincadeira

Tem um cara que disse
Que poeta finge
Finge que não sente a dor sentida

Diz-me então o que faz
O que sente a dor sentida

Esse aí não escreve não

Escrever é brincadeira
É jogar pro alto palavra
E chutar verso

Tristeza não brinca não meu senhor!
Tristeza é coisa séria!
Tristeza é coisa quieta que fica guardada no fundo da gente

Tristeza só finge que é palavra no analista
Analista é coisa séria
É dinheiro indo embora
Quem é que vai pagar
Pra não falar de coisa séria

Mas tristeza de verdade
Também coisa séria não é
Quem é que vai levar a sério
Um vivente que não é

Escrever, meu amigo,
É pra quem mente bem
Triste, triste mesmo
Virou ninguém

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Poema de mensagem de texto e ônibus andante

16 de dezembro de 2009 at 21:57 (Poesia)

Te amo que nem na estrada
A gente corre e fica com medo da freada
coração bate que nem martelo, de nervoso da curva fechada

A gente vai pra onde for
e quando chegar estica a perna e dá um abraço

Te amo que nem ouvir música no carro
Num sei pra onde eu to indo, mas o gostoso é do teu lado

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Cidadão Kane. Mais um trabalho guardado e quase esquecido.

8 de dezembro de 2009 at 16:04 (Cinema)

Mais uma vez a pedido do Wesley, resolvi postar um texto bem velhinho que escrevi pra uma disciplina beeem chatinha, acho que em 2008.

É sobre o Cidadão Kane.

Toda experiência humana é única, irreprodutível, incompreensível. É ao mesmo tempo compartilhável, interpretável, transmissível, representável e, acima de tudo, infinitamente capaz de afetar. Toda experiência se dá no tempo e se dissipa no tempo, mas também por ele se propaga. Toda experiência é a um mesmo tempo individualmente vivida e socialmente compartilhada. A experiência é ao longo do tempo revivida, modificada, revirada e desvirada.

Um texto não seria capaz de encerrar todos os matizes de uma experiência individual ou histórica, assim como não o seria um filme ou uma imagem, e o inverso é igualmente afirmável, nenhum filme ou fotografia, nenhuma experiência cotidiana seria capaz de reproduzir uma experiêcia-texto. Ainda assim, todas essas experiências (-texto, -imagem, -filme) dialogam entre si e com a experiência viva, instantânea e irreprodutível dos indivíduos e das sociedades.

Se for mesmo a História o estudo da experiência humana no tempo, se não for a busca de uma essência humana supostamente mais vital que seu próprio devir-experiência, então é nessa propulsão de modulações de experiências que sobrevivem ao tempo que encontramos nosso material de trabalho – nos filmes, nas imagens, nos textos, nos objetos e, porque não, nos sons e paladares.

Nos filmes modernos temos os documentos da vivência estética, moral, afetiva, ideológica moderna. Documentos, no entanto, que não são a vivência em si, a despeito de todo seu apelo de real: são uma transfiguração de momentos perdidos no tempo, moldados conscientemente com seus devidos propósitos  e de sentidos compartilhados e comprtilháveis, sempre reprodutíveis e nunca vividos da mesma maneira. Os filmes são talvez a armadilha mais perigosa, pois nos fazem sentir como que numa máquina do tempo, e são o instrumento mais valioso, porque mais cheio de facetas. São eles mesmos experiências que passam no tempo, narrativas que, mesmo não lineares, têm sempre alguma temporalidade, ou muitas. Fazem viver sensações e criam, então, história, assim como permitem acessar sensações de outrem e fazem compreender, então, História.

Se isso se pode falar para todo filme, então o que se pensar sobre um filme, que além de uma história versa sobre a experiência de recriação de uma outra história? De fato muito mais do que cabe num texto. Ainda assim há muito o que falar para preencher muitos textos, nada que seja igual à vivência de assistir ao filme, mas também muito mais do que o assistir ao filme.

O Cidadão Kane é, dentre tantas outras coisas, a vivência em imagens e sons da modernidade e do Capital. É o coroar de uma possibilidade histórica talvez nunca de fato realizada, mas perfeitamente realizável que inaugura nova moral (falta dela na verdade), novo amor, novas formas de ter, novas formas de ser massa e ser indivíduo, tudo isso agenciado pela infinita fonte de dinheiro – dinheiro que tanto é capital quanto luxo pré-moderno, que existe para ser dispendido.

Charles Foster Kane é uma criatura indizível (o filme termina afirmando que nenhuma palavra seria capaz de traduzir a vida de um homem), o mais próximo que se pode chegar desse homem é a conclusão de que para ele o mundo deveria girar em torno de sua vontade – e de fato girava! – e que seu único sofrimento era perder aquilo que sua incrível sorte, junto com sua estranha vontade colocara-lhe nas mãos. Charlie é um produto do capital: como ele mesmo afirma, não seria uma pessoa tão incrível se não pudesse gastar como bem entendesse seu infinito patrimônio. Ele não era, no entanto capitalista, não vivia pelo dinheiro, não lhe dava valor algum, tinha-o como meio que jorrava de uma fonte infinita, não como fim.

Charlie é uma criança que teve a incrível sorte de poder gastas quanto quisesse em que quisesse, uma criança que nunca teve o azar de aprender a ser adulto, de aprender a conhecer sua limitação na existência do outro. Quando ama e dá presentes à amada, o faz para ser amado em retorno, quando defende o povo, o faz para ser por ele amado. Kane é o ápice da ética individualista, ele é seu próprio critério de valor, a ausência de moral. Ele só é possível no mundo moderno.

Kane é, no fim de sua história, um personagem trágico, ele perde algo que nunca poderia ser comprado: sua mulher, que “não podia fazer isso com ele”, deixa-o. Chega finalmente o limite de sua potência, a vontade de alguém que resolveu não lhe fazer a vontade. Ele foi em toda sua vida uma criança, perdeu apenas três vezes (um trenó, rosebud, uma eleição e sua segunda mulher), mas, como profetizou seu rival nas urnas, demorou para aprender sua lição e percebeu o limite de sua vontade apenas no fim da vida. Como criança, é ao mesmo tempo cruel e belo.

Essas mil faces de um personagem-experiência são construídas no filme não pelo desenrolar “realista” de cena por cena de sua vida e é aí que se encontra a riqueza do enredo: ele é a história de uma tentativa de reconstrução histórica que admite sua incapacidade de plena realização. É um acessar constante de experiências nunca completamente apreensíveis, mas que mantêm como que uma cadeia de contatos entre passado e presente modulando-se a cada nova experiência que se desenrola.


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Um texto esquecido por aí

16 de novembro de 2009 at 18:02 (Exorcismos)

Ao Wesley, que me lembrou que eu tinha um blog.

Escrevi num momento de epifania, nem lembro se está bom (prefiro não ler meus textos):

“Quando a gente olha pro mundo e não vê nada, quando não tem nenhuma possibilidade, quando é impossível realizar qualquer coisa, não é o mundo que está subitamente errado e sem saída, é a gente que não consegue olhar pro mundo e ver possibilidades. Quase sempre não são as coisas que são impossíveis de serem feitas, somos nós que escolhemos querer as coisas impossíveis e nós que não conseguimos ver maneiras de fazê-as. Não, essa não é a ilusão liberal nem a ilusão do senso comum que acreditam que basta ter vontade para se conseguir tudo no mundo. Não, não basta vontade. O mundo é sim todo cheio de contradições, de acasos desgraçados e de conflitos, mas não é o mundo determinado e estático dos que querem justificar suas fraquezas e as dos outros. É mais fácil colocar a culpa no mundo, né? A gente se sente melhor consigo mesmo. O mundo é louco e a vida uma merda, mas estão sempre se movendo, sempre. Em geral, não é preciso sequer que o mundo apresente de fato suas armas, ninguém nem tenta ir em frente. Tudo parece muito grandioso, uma obra muito bem pensada e sólida, quem seria maluco de tentar inventar algo? Em geral, as contradições reais do mundo nem sequer precisam apresentar-se pessoalmente ao sujeito, ele lida sempre com seus mensageiros. O mundo já se apresenta como uma enorme obra de concreto e aço, feita para ser indestrutível, e a gente vê esse gigante – em movimento, a gente sabe no fundo que ele se move – e cristaliza essa imagem gigantesca na nossa cabeça, ela fica lá quase para sempre. Muito antes de qualquer tentativa tentar colocar-se em prática, está lá o mundo paralisado, como um muro barrando tudo. As pessoas vêem sim as contradições do mundo, todos sabem muito bem que tem muita coisa errada nessa história toda, não precisam de ninguém para avisar isso pra elas, nem pra defender o socialismo. Todos vêem esse mundo todo errado e ele é uma mega construção sempre parada. Ninguém enxerga possibilidades numa imagem cristalizada. Todos os becos do mundo parecem sem saída. Dá-se um jeito e vai-se levando a vida, mas possibilidades mesmo, são poucas as vezes que alguém cria. Não é o mundo de fato que paralisa alguém, é a imagem do mundo para esse alguém. As tentativas nem sequer são pensadas, nem sequer se imagina que seja possível pensá-las. O mundo é um produto pronto e acabado, não fui em que fiz nem você, não sabemos como funciona, quem somos nós para mexer nessa coisa? O mundo fetichizado não precisa mostrar suas garras, nós as vemos muito antes. Não se mexe no que já tá pronto, ainda mais quando não foi a gente que fez. Todo mundo sabe disso. Aquilo que já está cristalizado já morreu em possibilidades e movimentos. O produto, esse mesmo, a mercadoria, chega sempre pronto, é de uso imediato, pré-determinado. Nunca se sabe de onde veio, quem fez, como se faz. Ou talvez se saiba sim, mas não importa, depois de pronto, tudo fica diferente, irreconhecível. Aprendemos a ver tudo o que temos nas mãos como objetos únicos, que se encerram em si sós, que nunca vão além do que servem para ser. Tem crianças que ainda não aprenderam as utilidades das coisas, as suas razões de ser e objetivos, nas mãos dessas criaturas tudo vira de cabeça para baixo e se transforma em algo tão absolutamente inesperado e sem sentido que nem entendemos o que passaram a ser exatamente. É a capacidade de romper o fetiche, ou de não ter o fetiche, de ver possibilidades que sempre estiveram lá, movimentos que surgem o tempo todo. Porque no limite ainda há possibilidade, ainda que seja a morte.”

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Trabalho incompleto

22 de junho de 2009 at 18:28 (Capital)

Como já diz o nome, um trabalho incompleto…

Em sua análise do sistema capitalista de produção, Marx desenvolve categorias que nos permitem compreender toda uma gama de relações sociais aparentemente alheias à esfera da produção propriamente dita, categorias que dizem respeito, contudo, à auto-produção da própria sociedade e dos sujeitos sociais enquanto indivíduos estranhos a essa realidade objetiva à qual se refere sua análise. Muito já se falou sobre a teoria da alienação em Marx, mas, correndo o risco de reinventar a roda, creio não ser totalmente irrelevante colocar novamente em pauta essas categorias que pôe em maior evidência as condições de existência do próprio sujeito social em sua reprodução, não só material, no que comunmente se associa à subsistência física, mas fundamentalmente enquanto ser social.

A categoria pela qual se começa o Capital, como muito já se disse, não é de maneira alguma fortuita. A mercadoria é a grande forma na qual o mundo se apresenta e é a forma pela qual o indivíduo se relaciona com o mundo social. O que nos interessa aqui é justamente esta relação do aparecer, do se apresentar do mundo. Longe de ser uma questão menor, facilmente descartável, a aparência – minimizada pelo senso comum como parte menor da dualidade essência-aparência – é de importância decisiva quando o que está em discussão é uma sociedade fundada na própria separação (entre social e individual, entre indivíduos, entre público e privado, entre trabalho e vida pessoal, entre necessidade e desejo, entre idéia e prática). Num mundo em que tudo é externo em relação ao sujeito, tudo é para o sujeito aparência, ele objetivamente se relaciona com o mundo em primeiro lugar através de sua imagem e ela é, para ele, muito mais forte e material que as relações reais. A imagem é, na verdade, a relação real. Oscar Wilde talvez tenha estado muito mais perto da compreensão do mundo moderno do que se pode pensar à primeira vista quando de suas desconcertantes afirmações de que tudo é forma, o que importa é de fato a aparência.

A mercadoria aparece como relação mais simples e fundamental deste mundo justamente por ser um mundo em que se criam necessidades cada vez mais múltiplas conforme sejam múltiplas as novas possibilidades e subdivisões. Lembremos que “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas prpriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie.” A criação em moto perpétuo de necessidades, de exterioridades, portanto, é o modo de vida de um sistema de interdependência impessoal e abstrata em que o indivíduo é criado e recriado sempre em formato menor, sempre subordinado a, porque dependente de, uma exterioridade sempre crescente. O indivíduo (qualquer um deles, não só a classe trabalhadora) é dominado porque dependente de necessidades vendidas junto com suas satisfações. Nesse mundo em que tudo é aparência porque é externo, o modo de vida dominante não pode ser nada além da passividade.

Quando lemos trechos destacados dos Manuscritos Econômoco-Filosóficos em que Marx afirma que o trabalhador se depara com o produto do seu trabalho como algo alheio, que não lhe pertence nem lhe diz respeito, podemos tomar o produto do trabalho como aquele objeto produzido individualmente por cada trabalhador. Se pensarmos, contudo, mais além, percebemos que toda a produção social carece de sentido e é alheia à sociedade como um todo. A produção social não é apenas a mercadoria que se compra na loja da esquina ou as grandes máquinas que levam à frente a produção, é literalmente tudo que a sociedade produz nas condições modernas de produção. A produção social é, inclusive, a imagem que se cria e se vende do mundo social. Todo esse mundo, portanto, exterior ao indivíduo (o próprio indivíduo como [encontrar palavra], inclusive) não lhe pertence e sobre aquilo que não se reconhece como seu ou como passível de sofrer sua atuação obviamente não se aje. A passividade é assim a única situação possível diante daquilo que se lhe é alheio.

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.apenas o fim

15 de junho de 2009 at 3:15 (Cinema)

[Spoiler!!!]

Depois de ter tentado escrever um comentário para o texto da Bárbara sobre o não-visto filme .apenas o fim, depois de ter tentado escrever um texto sobre o comentário, depois de todas as desventuras possíveis com computadores endemoniados, finalmente um comentário sobre o [agora já visto] filme .apenas o fim (se o computador não explodir ou algo assim).

Fui lá, afinal, ver o tal filme. As espectativas tanto positivas quanto negativas eram tantas que se anulavam, cheguei lá sem ter a menor idéia se gostaria do filme. O resultado foi a coisa mais estranha possível: todos os comentários recolhidos até então estavam absolutamente certos, os positivos e os negativos. No balanço geral, o filme é bom, tem várias idéias boas, várias referências engraçadas, várias cenas divertidas ou bonitinhas e a idéia geral do filme é muito boa. Por outro lado, a constatação da Bárbara (que tá no blog dela: o link tá aqui do lado, chama  “…ou barbárie”) é absolutamente pertinente, a Erika Mader é nada mais que uma cult-bacaninha, supostamente casual, supostamente inteligente, supostamente profunda, supostamente boa atriz. Tem também algumas cenas desnecessárias, piadas um pouco forçadas e uns deslizes em algumas atuações.

A personagem da menina que resolve, por algum conflito interior, abandonar o namorado e ir em bora sem dizer pra onde é o que tem de mais intrigante no filme, a atuação ruim se mistura um pouco com a farsa que é a própria personagem e a gente fica meio sem saber o que era de propósito e o que não era. Ela é aquela menininha rica que estuda na PUC e acha que é muito bonito ser intelectual (às vezes me pergunto se em não fui meio parecida com isso em algum momento da minha vida), que a parada é ver O Sétimo Selo e ter grandes conflitos interiores, sentir que sempre faltou algo em sua vida e querer salvar o mundo, gostar de política e usar óculos de abelha. Não sei se a idéia dos produtores era exatamente essa ou se eles realmente acham ela uma pessoa muito profunda, mas o fato é que a personagem é muito bem construída, se você já conviveu com universitários de cursos meio alternativos você já conheceu alguém parecido. A grande dúvida é saber se a atriz ficou muito bem ou muito mal na personagem. Não conheço a fulana, mas poderia apostar que ela não estava representando nada muito diferente de si mesma, tanto que o filme tem várias cenas muito sinceras onde você vê muito claramente vários casais de amigos. Mas não sou tão má assim com a menina (a personagem, não a atriz), ela é sincera nos seus conflitos, ela de fato deve sofrer por não se encaixar no mundo e deve querer muito de verdade fugir de tudo. Isto talvez seja o que tem de mais genial no filme, ela tem um algo de ridículo, é meio trágico. Tudo nela é clichê, a roupa (a modinha cult), os gostos (“intelectuais”), os comentários. Ela cria pra si mesma a idéia do maior clichê de todos que é o da menina bonita que namora o cara nerd e é a mulher que ele nunca vai esquecer. Ele também vive essa relação assumindo isso, mas ele é diferente, ele não é só uma imagem da modinha, ele é um nerd porque é nerd, meio que porque nasceu assim, ele ama a garota loucamente, mas não precisa inventar uma imagem de um amor que tem que ser assim, ele é romantico porque é romantico. Ela parece que inventa pra si mesma que tem que ser a personagem de um romance e por isso não pode simplesmente ficar feliz onde está, ela tem que ser inquieta. Isto fica óbvio em uma cena quase no final em que ela fala (dessa vez não para ele, só para a câmera) que não poderia mudar de idéia – ela se confronta com a possibilidade de ficar, imagino que por ter passado um dia tão bom com o namorado, mas depois de ter começado a tragédia não poderia simplesmente parar a trama.

Toda essa dualidade da garota que é completamente fake e ao mesmo tempo muito verdadeira porque assume pra si mesma uma imagem de si que é pura imagem me leva a crer que o filme tem um ótimo roteirista, já as atuações e a direção deixam um pouco a desejar. Todas as cenas do casal no quarto conversando sobre banalidades são boas, elas ficaram bem naturais, com exceção, na verdade, de uma ou outra em que forçam muito alguma piada ou referência nerd. Como disse o meu pai, os americanos tem essa coisa de achar que tem que ser engraçado o tempo todo, as pessoas lá ficam contando uma piada atrás da outra. O filme dá algumas escorregadas nuns momentos desses, com piadas meio forçadas demais. Nas cenas que compõe a maior parte do filme tem algumas muito boas, mas a maioria tem apenas potencial para sê-lo. As de conversas sobre assuntos aleatórios ou os encontros casuais no campus (fora o último que foi meio falso) fluem muito bem, mas as mais dramáticas são sofríveis. O ator que faz o nerd-los-hermanos (Gregório Duvivier) esteve bem o filme todo, só teve uma cena em que ele ficou terrível, aquela em que ele chora no banheiro, não convenceu nem um pouco. A garota é que teve algumas atuações bem ruins. Teve cenas em que realmente não dava pra saber se o fake era da personagem ou se era só atuação ruim mesmo, mas nas cenas em que ela supostamente deveria ser mais profunda é que fica claro que tem algo muito errado.

Descontando-se esses probleminhas, o filme cria personagens e situações muito fodamente encontráveis nas nossas vidas de universitários cheios de referências nerds e sensibilidades estranhas. Tanto o casal quanto as pessoas que eles encontram são nossos velhos conhecidos de uff. E o final amarra o filme todo de um jeito incrível. Não ia escrever sobre o final, mas agora deu vontade…

Durante o filme todo fica a dúvida: será que ela vai mudar de idéia e ficar? E no final ela fala uma parada foda (tudo bem que fala com a expressão de quem diz “to indo no cinema” ou algo tão irrelevante quanto) que é a explicação do título do filme, ela diz que aquilo era apenas o fim, que não era importante, que importantes eram as coisas que aconteceram antes. Tá é um grandississísssimo clichê, mas é menos óbvio do que parece e definitivamente quase niguém sabe viver isso. Acaba que o final é meio que uma redenção da personagem, ela tem todo esse drama de quem acha que o mundo é feito de histórias de filmes cult e faz de si mesma uma personagem, mas acaba que ela vive o relacionamento dela de um jeito bonito – ela não estava feliz e terminou com tudo, sem briga, sem o ressentimento daqueles fins mal acabados. O filme deixa uma sensação de “que porra é essa que essa garota tá fazendo?” e o final transforma aquilo tudo em leveza porque foi tudo um processo meio ritual de separação. Não foi aquele término resultado de meses de agonia e rancor, não foi um térmono depois de uma traição. foi um término falado, vivido, não agonizado. Talvez nem seja uma má idéia essa de simplesmente ir em bora depois de uma conversa, afinal o fim nem era pra ser assim tão importante.

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De boniteza e de ausência mental

8 de maio de 2009 at 0:24 (Exorcismos)

Talvez seja preciso ser mais sincera comigo mesma, mais verdadeira com as coisas que eu digo e faço. Ontem, conversando com pessoas daquelas que vale a pena ter como amigos, que vivem as coisas com você e que lembram das coisas com você e que entendem o que você diz e o que você vive, enfim, ontem conversando com essas pessoas eu me pego dizendo uma coisa tão simples e tão óbvia e tão bonita, aí eu me lembro que eu tinha esquecido de viver isso depois de um tempo, que eu de repente parei de fazer as coisas como deveriam ser feitas, a gente esquece às vezes da leveza e da boniteza das coisas. A frase em questão era a seguinte: falávamos de como certos sofrimentos são inventados, de como a gente tem necessidade de criar amores platônicos pra provar pra si mesmo que tem que sofrer, falávamos dessas coisas e eu falava de como de repente eu parei de fazer isso, foi mais ou menos assim “Eu tava namorando um cara foda, que eu gostava pra caralho, aí me aparece o cara por quem eu fui apaixonada por dois anos e resolve se apaixonar por mim, e eu entro em crise e não sei o que fazer, minha vida tá de cabeça pra baixo e aí num fim de semana eu simplesmente não volto pra casa porque alí eu to bem e to me divertindo e aí todos os problemas desaparecem porque eu to feliz e ponto.” Foi uma conversa bonita, um momento bonito com amigos que entendem das coisas, que sabem que não é preciso muito, mas que é preciso ter pica pra fazer as coisas direito. Não é preciso encher a cara, melhor é uma boa cerveja, não é preciso um enorme salário e enormes confortos, basta o seu trabalho e o seu lugar, e não é de amores platônicos que se faz o mundo, é só de vontade.

Primeiro eu coloco em palavras uma das coisas mais bonitas que eu vivi, antes eu escrevo uma coisa bonita sobre como viver que é citada pelo meu amigo na conversa: “a gente inventa sofrimentos, é como você disse no seu perfil do orkut”, depois, no dia seguinte, eu estou vivendo e pensando exatamente o contrário do que eu dizia, precisando escrever sobre isso e então me lembro de uma conversa e de um texto, leio o texto.

Estava pensando em como tenho perdido meu tempo, em como não tenho feito nada, como tenho vivido sem um propósito, em como tenho sofrido por não conseguir mais me divertir com as coisas, em como tenho deixado o mundo ir em bora sem fazer muito pra ir pra algum lado qualquer, pensava sobre tudo isso e ia escrever sobre tudo isso quando lembrei de uma conversa e de um texto, e agora não sei mais sobre o que pensar nem sobre o que escrever. É difícil confrontar-se consigo mesmo, é uma batalha daquelas memoráveis de bons filmes de ação. No começo, os oponentes apenas se olham, precisam se analisar, ficam girando entorno de um espaço vazio (porque é alí o futuro). Esse momento parece interminável, nesse momento não se pode escrever porque a tensão é grande demais.

Nesse momento tudo parece meio fora de lugar, tudo parece meio estranho, como se eu estivesse no mundo do Cem anos de solidão, as coisas não andam como deveriam e o coração aperta. O que eu escrevo parece a coisa mais estranha do mundo, um texto desconexo, feio, um Frankenstein composto de partes de pensamentos que não chegaram a se completar e que só estão no mesmo lugar porque a uma linha segue a outra e as frases vão se agrupando em ordem cronológica mas nada lógica. E no entanto escrever tem que ser uma compulsão, de algum modo compulsória porque pus na minha cabeça que chega de se lamentar da vida, que pelo menos se crie algo e que se faça algo, mesmo que seja um Frankenstein de idéias sem forma. É um amontoado de palavras esperando por idéias bonitas que possam ser colocadas em formas bonitas e enquanto elas não chegam fica essa sensação esquisita de texto de historiador (ou de maluco) que toca um monte de coisas que poderiam ser idéia, mas que não tomam corpo. Por que diabos eu vou publicar isso?! Deve ter sido uma péssima idéia essa porra de desabafar e publicar, mas vá lá, é uma tentativa…

O melhor era citar o texto do orkut, esse aí diz alguma coisa.

“-É incrível como as pessoas invertem as coisas! Todos dizem que ser feliz é difícil. Ser triste é que é difícil! Quando você está triste o mundo se torna escuro, pesado, tudo fica mais arrastado e as tarefas desagradáveis nunca terminam. É preciso um esforço incrível para fazer qualquer coisa quando se está triste. Você precisa fazer força pra viver, porque se não fizer, a tristeza te mata. Vocês podem imaginar o que é ter que fazer força a cada segundo da sua existência para se manter vivo? Não tentem! Garanto-lhes que a tristeza mata. E tem pessoas morrando disso todo dia. O único jeito de viver é estar feliz o tempo todo, porque estando faliz ninguém precisa fazer força, todas as coisas acontecem assim, como que por mágica. Todo trabalho, por maiores que sejam as energias que ele exija, é absolutmente fácil, nem é trablho, na verdade, é brincadeira. Já brincaram de professor, de médico, de astronauta, de mãe, de jogador de futebol, de correr e de construir? Então, essas coisas não são todas fáceis? Queria saber quem foi que inventou que isso é tudo muito complicado? Outro dia eu fui a maior corredora de todos os tempos e depois dei o maior salto do mundo e o meu amigo era o cara mais forte do universo porque ele me pegou e me carregou nas costas por muito, muito tempo. E isso foi tudo tão fácil! Mas aí vieram e inventaram essa coisa de ficar triste pra fazer a gente se esforçar pelas coisas. Agora eu tenho que ficar por aí procurando meus amigos pra fazer tranças nos cabelos deles pra poder ficar feliz de novo e pra tudo ficar mais fácil outra vez. Mas o esquisito mesmo é que as pessoas não fazem essas coisas legais, elas nunca pulam e nem rolam no chão, e não saem correndo por aí nem pulam umas em cima das outras, elas ficam sentadas olhando pra baixo como se não tivessem mais pra onde olhar e ficam fazendo coisas chatas. Elas nem falam umas com as outras, ficam só murmurando seus problemas por aí, e quando se dirigem a você dizem que o mundo é muito difícil e complicado e que é preciso ter responsabilidades, se não ele acaba e desmorona na nossa cabeça. Como se o mundo precisasse da chatice delas! Esses dias tavam me dizendo que a gente tem que trablhar e se esforçar por tudo, porque se não, não tem valor de verdade, aí chegou um cara barbudo e vermelho (que não era o Papai Noel!) e disse que essa coisa de valor era uma grande besteira, que foram eles que inventaram aquilo porque queriam fazer todo mundo trabalhar. Muito simpático o barbudo! Acho que ele também nunca gostou dessa coisa de trabalho… Eles também inventaram umas coisas pra tomar e pra ver que fazem você esquecer de quando tá triste, aí inventaram que tem horários pra esquecer e que depois você tem que lembrar tudo de novo. Eles não se dão muito bem com essa coisa de lembrar e esquecer… E eles também não sabem voar!
-Então é melhor ser marciano mesmo?
-É.”

Acho que o melhor é ir ver o filme do Pelé.

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